O que vem por aí - VERMELHO
Com o objetivo de ampliar o espaço de divulgação sobre o fazer teatral e informar, com um pouco mais de profundidade, sobre o que tem sido produzido na cena local, o Blog Cena Capixaba dá início a uma série de cinco entrevistas com profissionais do Teatro no Espírito Santo cujos trabalhos estreiam neste ano de 2017. Nessas entrevistas, que contam com a colaboração da atriz e jornalista Patricia Galleto, artistas contam um pouco sobre seus processos de montagem, suas pesquisas e sobre o que o público pode esperar para conferir logo mais!
A primeira delas é com o ator Luiz Carlos Cardoso, da Companhia do Outro, que estreia o espetáculo “Vermelho”, ou “Rojo”, em espanhol, no próximo dia 25 de junho, em Cachoeiro de Itapemirim, ao lado do mexicano Leo Bautista, do grupo Artelugio S.C.. Ambos estão em cena e assinam a direção da peça, que foi contemplada com o prêmio da Lei Rubem Braga de Cachoeiro de Itapemirim. Confira a conversa sobre o trabalho e acompanhe as próximas entrevistas do que vem por aí!
Como surgiu a ideia de montar “Vermelho”, ou “Rojo”, e do que fala o trabalho?
O projeto surgiu em 2012, quando eu estava trabalhando em Cachoeiro de Itapemirim com um espetáculo e eu tinha a proposta de levá-lo para o México. Nesse período, fiz contato com universidades de lá que tinham cursos de Teatro e Artes e acabei conseguindo fazer contato somente com um grupo, chamado Artelugio S.C., dirigido pelo Leo Bautista. Ele se interessou muito pela ideia de um brasileiro procurar um contato no México para fazer esse intercâmbio e pelo teatro em si, pela possibilidade de troca, mas acabou não rolando nada e ficamos só com o contato. Conversamos muito sobre teatro e sobre a vida nesse período, descobrimos vários pontos em comum, eu comecei a viajar para outros países e ele viaja muito para a América Central, também já foi para outros países da Europa, Oriente Médio, tudo pelo teatro. Ficamos sempre falando de como é essa vida teatral, de dar aula, de se apresentar na América Latina. A gente conversava muito sobre essas tessituras, geografias, essas coisas que a gente via da América Latina, como isso nos atingia, de forma positiva, para criar e se relacionar. Ficamos na conversa e, entre 2012 e 2013, tivemos a ideia de montar algo juntos, só não sabíamos o quê.
E aí veio a ideia de montar um trabalho sobre a América Latina, mas que fosse a América Latina através de um olhar muito nosso, não uma aula sobre a América Latina, de história ou português e espanhol, mas que falasse de “miradas”, de olhares latino-americanos. Começamos a esboçar roteiro, eixos de criação, chegamos a algo que falasse sobre uma América Latina através das mulheres, dos muros, das fronteiras e das cozinhas. Tudo isso na ideia, a gente nunca tinha se visto pessoalmente, era tudo pela internet. Como seria muito custoso, nossas vidas foram se direcionando para outros caminhos, montagens de outros trabalhos, mas sempre estivemos em contato. Em 2016, inscrevi o projeto na Lei Rubem Braga de Cachoeiro. A gente escreveu o projeto de uma forma muito mais simples e mais amadurecida do que era em 2012 e foi aprovado. O projeto era a montagem de uma dramaturgia e de um espetáculo bilíngue, que contemplasse esse intercâmbio dos dois. Com essa verba, a gente conseguiu se encontrar pela primeira vez. Agora, em 2017, nós começamos a desenvolver “Vermelho”, ou “Rojo” - são os dois títulos porque é um espetáculo bilingue. Ele vai chamar de “Rojo” e eu vou chamar de “Vermelho”, mas eu posso falar “Rojo” também, e ele, “Vermelho”, porque nós dois estamos interessados na língua e na cultura do outro.
Então, vocês se encontraram pela primeira vez já para trabalhar?
Sim, mas, antes, foram 5 anos de conversa. Quando a gente se encontrou em abril, no México, foram três semanas de ensaio, de criação, de sala de ensaio, mas de uma forma que tudo que a gente jogava era aceito, tinha uma resposta rápida, acontecia. Em três semanas, a gente montou um trabalho de 50 minutos.
E tinha a ver com o que vocês conversavam ou mudou muita coisa?
Tinha tudo a ver. Nesse tempo, a gente não só conversava como experimentava criação de texto, um criava um texto e mandava para o outro. Eu fiz um esboço da dramaturgia do espetáculo, de umas 15 páginas, e muito disso está ali na obra que criamos. Estar lá foi ótimo porque ele também é crítico de arte. Muita coisa tinha significado através da história pré-colombiana ou já depois da chegada dos espanhóis aqui, o que justificava muito como falar de mulheres, por exemplo - dois homens falando de mulheres -, ou de cozinha, ou de fronteiras, ou de muros. Era tudo dentro de um contexto muito latino-americano, de muito estudo e muita pesquisa.
Gostaria que você falasse um pouco desses elementos, que parecem ser estruturais para o espetáculo (mulheres, cozinha, muros e fronteiras). O que eles significam e por que surgiram dentro do trabalho?
Os quatro elementos têm muito a ver com a vida de cada um. Eu e o Leo temos uma relação muito forte com as mulheres das nossas famílias, nossas mães, tias, avós, mais do que com os homens. Elas nos ensinaram muitas coisas, e a América Latina é bastante formada por matriarcas, mais do que patriarcas, apesar de ser muito machista. Ainda assim, é muito consolidada em mulheres que contam histórias e passam as histórias das suas famílias adiante. Um dos lugares onde elas fazem isso, onde elas dão base para esse desenrolar das famílias e do futuro dessa civilização latina, é na cozinha. Não porque “o lugar de mulher é na cozinha”, não é esse lugar aonde a gente quer chegar. Mas sim porque é essencialmente na cozinha que essas mulheres latinas vão contar os segredos, as histórias mais íntimas, as dores, as delícias, os prazeres. Não é na sala de estar - isso talvez seja muito europeu, o fato de se sentar numa sala de estar para conversar. Geralmente, é ao redor de onde se cozinha, se você está fazendo um chá ou assando uma carne, descascando uma cebola, é ali que está falando, contando uma história. E essa história acaba sendo uma intimidade familiar.
Isso também se relaciona com classe social, na sua visão?
Isso tem muito a ver com classe social. A base da América Latina é feita por classes C e D, é a massa que vai dar desenvolvimento para a história da América Latina, apesar de ser dominada pelas classes A e B. Dessas pessoas que a gente fala, que convivem com duas coisas que são primordiais que acontecem desde a chegada dos europeus, até antes dela, que são os muros e as fronteiras. Não são necessariamente muros de tijolos, ou fronteiras geográficas, são fronteiras sociais, econômicas, políticas, culturais, históricas. Assim como os muros, que não são somente aqueles iguais ao que o Trump quer construir entre o México e os Estados Unidos. Mas são também os muros sociais, os muros entre a favela e o bairro rico. Existe um muro ali, concreto mesmo, mas ele nem é tão importante assim, mais importante é essa diferença que se impõe de um lado e que se estabelece de outro. Então, a gente acha que esses quatro elementos são muito atuais, ontem e hoje, e tornam a obra atemporal.
E o nome “Vermelho” surge de onde?
O título “Vermelho” veio porque a gente observa esse povo latino-americano enérgico, forte, vivo, intenso, batalhador, desde os astecas, os maias e os incas, que tinham civilizações moderníssimas e não paravam de trabalhar e construir, até nós aqui. Somos muito vermelhos; a gente vai no significado etimológico mesmo da palavra, de sangue, de energia, de paixão, de vitalidade, isso é muito característico da gente. Não é uma obra esquerdista, petista (risos), não é com essa intenção, mas é muito provável que chegue a um lugar parecido, é muito provável que quem observe a obra vá ver algo que está circulando, porque também não deixa de ser político. Mas não é com a intenção de levantar bandeira para ninguém. A nossa raiz é formada por atos políticos também...
…Além do próprio recorte que vocês fazem ao trazer esses elementos culturais. Acho que isso também traz um olhar político sobre a atualidade.
Sim, a gente está trabalhando com fatos que a gente vê e vive. A gente não está pegando um exemplo e querendo reproduzir esse exemplo histórico, como a tomada dos espanhóis ao México, a dominação sobre os índios, a chegada dos portugueses ao Brasil. A gente não quer falar disso, a gente está falando de coisas que a gente vive, que pode levar com a verdade de quem vive, viveu e está vivendo.
Sobre a dramaturgia, você disse que começou a fazer um esboço já naquela época de conversas. Como isso se estrutura em termos de espetáculo?
O espetáculo é composto por dois personagens, que não têm nome, são dois indivíduos latinos que contam suas histórias e vão transitando por histórias de outros até que acabam se encontrando. São duas pessoas que estão na América Latina, não tem um país específico, são dois latinos que falam um, português e, outro, espanhol. Eles começam pela cozinha, com coisas que eles aprenderam nesse espaço. Contam histórias de si mesmo e, através delas, entram na história de uma mulher, que não é a história da mulher latina, é a história dela. Ela conta sobre um cara que fugiu porque matou uma pessoa, e a gente encontra esse cara e vive ele. Os dois intérpretes se encontram e entram num lugar que também não tem geografia, não tem tempo, existe somente um local que é latino-americano e que está cheio de verdades. Ali, as verdades latinas são ditas, de forma que esses dois comecem a dizer tudo o que eles sabem, sentem e vivem sobre a América Latina, em português, em espanhol e nas várias línguas que existem nessa região.
A gente ainda está no processo. O Leo chega ao Brasil agora e nós vamos estrear o espetáculo no dia 25 de junho em Cachoeiro. Nas três semanas que ele vai ficar aqui, a gente vai amarrar as pontas do que a gente costurou lá no México, mas já temos um eixo muito bem encaminhado do que nós vamos fazer. O que eu posso dizer é que são dois homens latinos que vão ao encontro de suas raízes através de pessoas que eles vivem e encontraram na América Latina, mulheres, lugares, cores, texturas, tudo isso está ali. O personagem acaba virando uma textura, uma cor, ele não vira uma outra pessoa, necessariamente, e é isso o que a gente conta.
Você fala que o espetáculo é bilíngue. Como se dá a relação entre as línguas na peça?
Os dois intérpretes falam português e espanhol, sem ser uma aula ou uma tradução. Existe um jogo de idioma que também faz parte da dramaturgia, um jogo de comunicação, de como um entende o outro e de como esse jogo de idiomas faz com que tudo seja entendível e se torne uma coisa só. Nativos de ambos os idiomas conseguem entender muito bem. A gente joga de uma forma que existe até repetição de cena, uma em português e outra em espanhol, mas as duas são contadas e montadas de formas diferentes e uma cena acaba completando a outra.
Vocês, como atores, estão trabalhando sem o olhar de uma terceira pessoa, como tem sido o processo?
Realmente, foi um trabalho muito só de nós dois, mas, lá no México (e aqui também vai acontecer isso), fizemos muitos ensaios com a presença de atores, artistas, fizemos um ensaio aberto seguido de uma conversa, para a gente saber também para onde estamos indo, sem se jogar no escuro. Aqui também a gente vai complementar o espetáculo com a presença da musicista Alessandra Biato, que é do grupo Anônimos de Teatro. O espetáculo é promovido pelo grupo Anônimos de Teatro, que é um grupo de Cachoeiro, e produzido pela Companhia do Outro, em parceria com a Artelugio S.C., do México. Então, lá, ele levou seus parceiros de criação, aqui, eu estou trazendo os meus, que são a Alessandra e a Isabel Bremide, que vai operar a luz e é atriz. Vamos fazer um ensaio aberto também, seguido de uma conversa, para não estarmos sozinhos.
Tem previsão para apresentação em outras cidades ou no México?
Por enquanto, não, gostaria muito, mas é custoso. Conseguimos uma parceria com a embaixada do Brasil no México, o que nos dá facilidades para levar o espetáculo para centros culturais do Brasil em outros países. O nosso plano é que esse espetáculo dure muito anos, vá para outros países, mas que ele não seja apresentado com tanta frequência porque é um investimento alto unir os dois atores e a equipe. É possível que o Leo volte para cá em uma oportunidade em que eu consiga uma agenda de temporada para um mês, por exemplo, ou que eu vá para lá, da mesma forma. Mas, provavelmente, isso não vai ser este ano.
Em alguns dos seus últimos projetos, você tem trabalhado com solos e com parceiros específicos para cada espetáculo. É uma característica de trabalho que se desenha?
Com “Vermelho” não foi proposital, mas ele acabou se unindo a uma série de trabalhos que têm a ver com esse conceito de Companhia do Outro, de estar ao lado do outro, contar história desse outro e perceber que esse outro sou eu mesmo, ou um alguém por quem a gente está sempre em busca. Que começou com “A Culpa”, veio no “Viajante”, onde isso está bastante claro, e está no “Vermelho”. Cada um está num contexto diferente. Isso numa linha que eu venho seguindo que não foi proposital, mas que vem sendo construída, de trabalhar solo, sozinho, e de encontrar conceitos através desses trabalhos, sempre chamando alguém, estando com o outro do meu lado, de uma forma ou de outra. No Viajante, com Fernando Marques; na Culpa, com o Carlos Ola; e, agora, com o Leo, que também costuma trabalhar assim. E há muito tempo que ele não fazia um trabalho em cena, dirigia mais do que atuava. Por isso também a presença dele, para ele, é muito importante nessa obra.
A peça surge dos desejos e necessidades artísticas de cada um dos intérpretes…
É, e acaba sendo até desejos e necessidades pessoais - o de estar em cena, o que falar em cena. Eu não chamei ele para fazer algo que eu quero; ele também quer. Os trabalhos nasceram juntos, de duas pessoas mesmo, não só de uma. Por isso, eu falo que é um trabalho muito difícil, porque é a primeira vez que eu faço tudo isso - dramaturgia, direção, figurino, cenário, iluminação... -, e porque é tudo muito próprio, não é encomendado, é de uma necessidade dos dois quererem contar isso. Foram tantas viagens, tantos encontros com as pessoas, que isso não tem como ficar só na memória individual, isso tem que ser dito e expressado de uma outra forma, tem um material muito emotivo, pessoal e sensível nisso tudo. Mais do que foto, recorte e essas coisas de viagem, é uma bagagem que pode ser aproveitada de muitas formas, acho que ela está muito presente no “Vermelho” dos dois lados: do dele e do meu.
A primeira delas é com o ator Luiz Carlos Cardoso, da Companhia do Outro, que estreia o espetáculo “Vermelho”, ou “Rojo”, em espanhol, no próximo dia 25 de junho, em Cachoeiro de Itapemirim, ao lado do mexicano Leo Bautista, do grupo Artelugio S.C.. Ambos estão em cena e assinam a direção da peça, que foi contemplada com o prêmio da Lei Rubem Braga de Cachoeiro de Itapemirim. Confira a conversa sobre o trabalho e acompanhe as próximas entrevistas do que vem por aí!
Como surgiu a ideia de montar “Vermelho”, ou “Rojo”, e do que fala o trabalho?
O projeto surgiu em 2012, quando eu estava trabalhando em Cachoeiro de Itapemirim com um espetáculo e eu tinha a proposta de levá-lo para o México. Nesse período, fiz contato com universidades de lá que tinham cursos de Teatro e Artes e acabei conseguindo fazer contato somente com um grupo, chamado Artelugio S.C., dirigido pelo Leo Bautista. Ele se interessou muito pela ideia de um brasileiro procurar um contato no México para fazer esse intercâmbio e pelo teatro em si, pela possibilidade de troca, mas acabou não rolando nada e ficamos só com o contato. Conversamos muito sobre teatro e sobre a vida nesse período, descobrimos vários pontos em comum, eu comecei a viajar para outros países e ele viaja muito para a América Central, também já foi para outros países da Europa, Oriente Médio, tudo pelo teatro. Ficamos sempre falando de como é essa vida teatral, de dar aula, de se apresentar na América Latina. A gente conversava muito sobre essas tessituras, geografias, essas coisas que a gente via da América Latina, como isso nos atingia, de forma positiva, para criar e se relacionar. Ficamos na conversa e, entre 2012 e 2013, tivemos a ideia de montar algo juntos, só não sabíamos o quê.
E aí veio a ideia de montar um trabalho sobre a América Latina, mas que fosse a América Latina através de um olhar muito nosso, não uma aula sobre a América Latina, de história ou português e espanhol, mas que falasse de “miradas”, de olhares latino-americanos. Começamos a esboçar roteiro, eixos de criação, chegamos a algo que falasse sobre uma América Latina através das mulheres, dos muros, das fronteiras e das cozinhas. Tudo isso na ideia, a gente nunca tinha se visto pessoalmente, era tudo pela internet. Como seria muito custoso, nossas vidas foram se direcionando para outros caminhos, montagens de outros trabalhos, mas sempre estivemos em contato. Em 2016, inscrevi o projeto na Lei Rubem Braga de Cachoeiro. A gente escreveu o projeto de uma forma muito mais simples e mais amadurecida do que era em 2012 e foi aprovado. O projeto era a montagem de uma dramaturgia e de um espetáculo bilíngue, que contemplasse esse intercâmbio dos dois. Com essa verba, a gente conseguiu se encontrar pela primeira vez. Agora, em 2017, nós começamos a desenvolver “Vermelho”, ou “Rojo” - são os dois títulos porque é um espetáculo bilingue. Ele vai chamar de “Rojo” e eu vou chamar de “Vermelho”, mas eu posso falar “Rojo” também, e ele, “Vermelho”, porque nós dois estamos interessados na língua e na cultura do outro.
Então, vocês se encontraram pela primeira vez já para trabalhar?
Sim, mas, antes, foram 5 anos de conversa. Quando a gente se encontrou em abril, no México, foram três semanas de ensaio, de criação, de sala de ensaio, mas de uma forma que tudo que a gente jogava era aceito, tinha uma resposta rápida, acontecia. Em três semanas, a gente montou um trabalho de 50 minutos.
E tinha a ver com o que vocês conversavam ou mudou muita coisa?
Tinha tudo a ver. Nesse tempo, a gente não só conversava como experimentava criação de texto, um criava um texto e mandava para o outro. Eu fiz um esboço da dramaturgia do espetáculo, de umas 15 páginas, e muito disso está ali na obra que criamos. Estar lá foi ótimo porque ele também é crítico de arte. Muita coisa tinha significado através da história pré-colombiana ou já depois da chegada dos espanhóis aqui, o que justificava muito como falar de mulheres, por exemplo - dois homens falando de mulheres -, ou de cozinha, ou de fronteiras, ou de muros. Era tudo dentro de um contexto muito latino-americano, de muito estudo e muita pesquisa.
Gostaria que você falasse um pouco desses elementos, que parecem ser estruturais para o espetáculo (mulheres, cozinha, muros e fronteiras). O que eles significam e por que surgiram dentro do trabalho?
Os quatro elementos têm muito a ver com a vida de cada um. Eu e o Leo temos uma relação muito forte com as mulheres das nossas famílias, nossas mães, tias, avós, mais do que com os homens. Elas nos ensinaram muitas coisas, e a América Latina é bastante formada por matriarcas, mais do que patriarcas, apesar de ser muito machista. Ainda assim, é muito consolidada em mulheres que contam histórias e passam as histórias das suas famílias adiante. Um dos lugares onde elas fazem isso, onde elas dão base para esse desenrolar das famílias e do futuro dessa civilização latina, é na cozinha. Não porque “o lugar de mulher é na cozinha”, não é esse lugar aonde a gente quer chegar. Mas sim porque é essencialmente na cozinha que essas mulheres latinas vão contar os segredos, as histórias mais íntimas, as dores, as delícias, os prazeres. Não é na sala de estar - isso talvez seja muito europeu, o fato de se sentar numa sala de estar para conversar. Geralmente, é ao redor de onde se cozinha, se você está fazendo um chá ou assando uma carne, descascando uma cebola, é ali que está falando, contando uma história. E essa história acaba sendo uma intimidade familiar.
Isso também se relaciona com classe social, na sua visão?
Isso tem muito a ver com classe social. A base da América Latina é feita por classes C e D, é a massa que vai dar desenvolvimento para a história da América Latina, apesar de ser dominada pelas classes A e B. Dessas pessoas que a gente fala, que convivem com duas coisas que são primordiais que acontecem desde a chegada dos europeus, até antes dela, que são os muros e as fronteiras. Não são necessariamente muros de tijolos, ou fronteiras geográficas, são fronteiras sociais, econômicas, políticas, culturais, históricas. Assim como os muros, que não são somente aqueles iguais ao que o Trump quer construir entre o México e os Estados Unidos. Mas são também os muros sociais, os muros entre a favela e o bairro rico. Existe um muro ali, concreto mesmo, mas ele nem é tão importante assim, mais importante é essa diferença que se impõe de um lado e que se estabelece de outro. Então, a gente acha que esses quatro elementos são muito atuais, ontem e hoje, e tornam a obra atemporal.
E o nome “Vermelho” surge de onde?
O título “Vermelho” veio porque a gente observa esse povo latino-americano enérgico, forte, vivo, intenso, batalhador, desde os astecas, os maias e os incas, que tinham civilizações moderníssimas e não paravam de trabalhar e construir, até nós aqui. Somos muito vermelhos; a gente vai no significado etimológico mesmo da palavra, de sangue, de energia, de paixão, de vitalidade, isso é muito característico da gente. Não é uma obra esquerdista, petista (risos), não é com essa intenção, mas é muito provável que chegue a um lugar parecido, é muito provável que quem observe a obra vá ver algo que está circulando, porque também não deixa de ser político. Mas não é com a intenção de levantar bandeira para ninguém. A nossa raiz é formada por atos políticos também...
…Além do próprio recorte que vocês fazem ao trazer esses elementos culturais. Acho que isso também traz um olhar político sobre a atualidade.
Sim, a gente está trabalhando com fatos que a gente vê e vive. A gente não está pegando um exemplo e querendo reproduzir esse exemplo histórico, como a tomada dos espanhóis ao México, a dominação sobre os índios, a chegada dos portugueses ao Brasil. A gente não quer falar disso, a gente está falando de coisas que a gente vive, que pode levar com a verdade de quem vive, viveu e está vivendo.
Sobre a dramaturgia, você disse que começou a fazer um esboço já naquela época de conversas. Como isso se estrutura em termos de espetáculo?
O espetáculo é composto por dois personagens, que não têm nome, são dois indivíduos latinos que contam suas histórias e vão transitando por histórias de outros até que acabam se encontrando. São duas pessoas que estão na América Latina, não tem um país específico, são dois latinos que falam um, português e, outro, espanhol. Eles começam pela cozinha, com coisas que eles aprenderam nesse espaço. Contam histórias de si mesmo e, através delas, entram na história de uma mulher, que não é a história da mulher latina, é a história dela. Ela conta sobre um cara que fugiu porque matou uma pessoa, e a gente encontra esse cara e vive ele. Os dois intérpretes se encontram e entram num lugar que também não tem geografia, não tem tempo, existe somente um local que é latino-americano e que está cheio de verdades. Ali, as verdades latinas são ditas, de forma que esses dois comecem a dizer tudo o que eles sabem, sentem e vivem sobre a América Latina, em português, em espanhol e nas várias línguas que existem nessa região.
A gente ainda está no processo. O Leo chega ao Brasil agora e nós vamos estrear o espetáculo no dia 25 de junho em Cachoeiro. Nas três semanas que ele vai ficar aqui, a gente vai amarrar as pontas do que a gente costurou lá no México, mas já temos um eixo muito bem encaminhado do que nós vamos fazer. O que eu posso dizer é que são dois homens latinos que vão ao encontro de suas raízes através de pessoas que eles vivem e encontraram na América Latina, mulheres, lugares, cores, texturas, tudo isso está ali. O personagem acaba virando uma textura, uma cor, ele não vira uma outra pessoa, necessariamente, e é isso o que a gente conta.
Você fala que o espetáculo é bilíngue. Como se dá a relação entre as línguas na peça?
Os dois intérpretes falam português e espanhol, sem ser uma aula ou uma tradução. Existe um jogo de idioma que também faz parte da dramaturgia, um jogo de comunicação, de como um entende o outro e de como esse jogo de idiomas faz com que tudo seja entendível e se torne uma coisa só. Nativos de ambos os idiomas conseguem entender muito bem. A gente joga de uma forma que existe até repetição de cena, uma em português e outra em espanhol, mas as duas são contadas e montadas de formas diferentes e uma cena acaba completando a outra.
Os atores em sala de ensaio no México, em abril deste ano: na primeira foto, em início de montagem. Na foto abaixo, ensaio aberto realizado no Centro Cultural Brasil - México, na capital mexicana.
Vocês, como atores, estão trabalhando sem o olhar de uma terceira pessoa, como tem sido o processo?
Realmente, foi um trabalho muito só de nós dois, mas, lá no México (e aqui também vai acontecer isso), fizemos muitos ensaios com a presença de atores, artistas, fizemos um ensaio aberto seguido de uma conversa, para a gente saber também para onde estamos indo, sem se jogar no escuro. Aqui também a gente vai complementar o espetáculo com a presença da musicista Alessandra Biato, que é do grupo Anônimos de Teatro. O espetáculo é promovido pelo grupo Anônimos de Teatro, que é um grupo de Cachoeiro, e produzido pela Companhia do Outro, em parceria com a Artelugio S.C., do México. Então, lá, ele levou seus parceiros de criação, aqui, eu estou trazendo os meus, que são a Alessandra e a Isabel Bremide, que vai operar a luz e é atriz. Vamos fazer um ensaio aberto também, seguido de uma conversa, para não estarmos sozinhos.
Tem previsão para apresentação em outras cidades ou no México?
Por enquanto, não, gostaria muito, mas é custoso. Conseguimos uma parceria com a embaixada do Brasil no México, o que nos dá facilidades para levar o espetáculo para centros culturais do Brasil em outros países. O nosso plano é que esse espetáculo dure muito anos, vá para outros países, mas que ele não seja apresentado com tanta frequência porque é um investimento alto unir os dois atores e a equipe. É possível que o Leo volte para cá em uma oportunidade em que eu consiga uma agenda de temporada para um mês, por exemplo, ou que eu vá para lá, da mesma forma. Mas, provavelmente, isso não vai ser este ano.
Em alguns dos seus últimos projetos, você tem trabalhado com solos e com parceiros específicos para cada espetáculo. É uma característica de trabalho que se desenha?
Com “Vermelho” não foi proposital, mas ele acabou se unindo a uma série de trabalhos que têm a ver com esse conceito de Companhia do Outro, de estar ao lado do outro, contar história desse outro e perceber que esse outro sou eu mesmo, ou um alguém por quem a gente está sempre em busca. Que começou com “A Culpa”, veio no “Viajante”, onde isso está bastante claro, e está no “Vermelho”. Cada um está num contexto diferente. Isso numa linha que eu venho seguindo que não foi proposital, mas que vem sendo construída, de trabalhar solo, sozinho, e de encontrar conceitos através desses trabalhos, sempre chamando alguém, estando com o outro do meu lado, de uma forma ou de outra. No Viajante, com Fernando Marques; na Culpa, com o Carlos Ola; e, agora, com o Leo, que também costuma trabalhar assim. E há muito tempo que ele não fazia um trabalho em cena, dirigia mais do que atuava. Por isso também a presença dele, para ele, é muito importante nessa obra.
A peça surge dos desejos e necessidades artísticas de cada um dos intérpretes…
É, e acaba sendo até desejos e necessidades pessoais - o de estar em cena, o que falar em cena. Eu não chamei ele para fazer algo que eu quero; ele também quer. Os trabalhos nasceram juntos, de duas pessoas mesmo, não só de uma. Por isso, eu falo que é um trabalho muito difícil, porque é a primeira vez que eu faço tudo isso - dramaturgia, direção, figurino, cenário, iluminação... -, e porque é tudo muito próprio, não é encomendado, é de uma necessidade dos dois quererem contar isso. Foram tantas viagens, tantos encontros com as pessoas, que isso não tem como ficar só na memória individual, isso tem que ser dito e expressado de uma outra forma, tem um material muito emotivo, pessoal e sensível nisso tudo. Mais do que foto, recorte e essas coisas de viagem, é uma bagagem que pode ser aproveitada de muitas formas, acho que ela está muito presente no “Vermelho” dos dois lados: do dele e do meu.
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