ENTREVISTA: Márcio Marciano é o dramaturgo do Projeto Orwell

por Paulo Gois Bastos


Um dos fundadores da Companhia do Latão, de São Paulo, e o criador do Coletivo de Teatro Alfenim, de João Pessoa,  Márcio Marciano fará a condução dramatúrgica do “Projeto Orwell: Uma Fábula Sobre o Poder” - residência artística em artes cênicas com a Boyásha e o Grupo de Teatro Rerigtiba. Nessa empreitada, há também nomes que são referência nacionais em suas respectivas áreas de atuação: o diretor Fernando Yamamoto e a preparadora vocal Babaya Morais.

Márcio Marciano é formado em Artes Cênicas pela ECA-USP e, enquanto dramaturgo convidado, escreveu “O Castelo da Torre” (2016) e “Medeia aos pedaços” (2018), para o Grupo Vilavox, de Salvador (BA) e “Auto da Boa Vizinhança” (2017), para o Grupo Clowns de Shakespeare, de Natal (RN). Em 2008, lançou pela Editora Cosac Naify o livro “Companhia do Latão 7 Peças”, com textos escritos ao longo dos últimos dez anos com esse coletivo teatral que é referência nacional. Atuou como crítico na Revista Bravo, foi editor e hoje é colaborador da Revista Vintém, da Companhia do Latão, é editor da Volante Lapada, publicação do Movimento Lapada, rede formada por grupos de teatro Nordeste.

Nesta entrevista, ele fala sobre o seu trabalho para desenvolver a dramaturgia do Projeto Orwell,  proposta que resultará na montagem de um espetáculo de rua ainda para este ano.

Como se deu sua aproximação com o Projeto Orwell? 
Eu conhecia muito superficialmente os meninos da Boyásha quando eles circularam aqui pelo Nordeste em 2014. Na ocasião, eles nos visitaram, na sede do Alfenim, na Casa Amarela, tivemos uma primeira conversa e sinalizamos essa possibilidade de fazer alguma coisa futuramente com eles. Daí, fiquei acompanhando um pouco à distância o trabalho deles devido à minha proximidade com o Fernando Yamamoto que me atualizava sobre as andanças da Boyásha. Quando recebi o convite para fazer a dramaturgia, aceitei prontamente. Daí me inteirei sobre como a Boyásha havia concebido o projeto em parceria com o Grupo de Teatro Rerigtiba, grupo que eu sequer imaginava existir.

Inicialmente, o que lhe chamou a atenção nessa proposta de residência artística?
Estou impressionado com o que encontrei: a forma como esses grupos estão se articulando no Espírito Santo, a trajetória do Rerigtiba, que é uma companhia capixaba importante e que conseguiu construir uma sede maravilhosa, ver todo esse trabalho aplicado naquele espaço. Encontrei pessoas com uma enorme disposiçåo para o trabalho e, considerando que são dois grupos de teatro que sentaram para pensar conjuntamente um projeto, isso me deixa ainda mais animado. Este trabalho também me atraiu devido ao seu tema. Quando eu saí daqui de João Pessoa, mobilizado pela recente releitura de A Revolução dos Bichos, pensei que o momento não podia ser mais adequado para trabalhar com esse material que, apesar da aparente simplicidade da alegoria, é muito rico e complexo e se presta a muitas leituras, sobretudo neste momento de nebulosidade e de confusão vivido pelo Brasil e mundialmente. Temos o desafio de partir desse material para refletir sobre o que está se passando conosco hoje e para encontrar uma dramaturgia que dialogue com a atualidade sem perder de vista a ideia original da alegoria do Orwell e que explicite a nossa leitura sobre o material - que vai além daquela crítica que se cristalizou pela utilização meio indevida que essa alegoria teve durante o período da Guerra Fria - ou seja, como trabalhar com esse material nos dias de hoje. Ao chegar em Anchieta, foi possível perceber que há uma “química” entre os atores e que eles são muito diferentes uns dos outros, por diversos motivos como as distintas trajetórias e as visões que cada um deles está construindo sobre o fazer teatral. Essa diferença torna a coisa mais interessante ainda, pois enriquece o processo: eles têm trajetórias diferentes, com pensamentos diferentes, mas estão dispostos e disponíveis a construir essa parceria. Isso foi perceptível na sala de ensaio durante os poucos dias em que estivemos juntos. É muito bonito ver o quanto o grau de comunicação e de entrega de ambos os grupos já trouxe resultados nesse pouquíssimo tempo. Essa foi a melhor impressão: saber que eles estão buscando essa forma de diálogo e de parceria a partir da diversidade. Acho que isso vai reverberar e resultar em trabalho muito potente.

Que atividades foram desenvolvidas nesse seu primeiro encontro com os integrantes do Projeto Orwell?
Como havia acabado de reler o livro, imediatamente comecei a pensar em algumas coisas, mas não quis antecipar nada antes de ver o que eles haviam já percorrido em processo e o modo como estavam lendo o material. E a melhor forma de saber isso não seria perguntando para eles, mas sim na prática, ou seja, eles dizendo e mostrando esse entendimento através das próprias cenas. Por isso, no nosso primeiro dia de trabalho eles mostraram o esboço de uma cena e alguns exercícios que já estavam sendo desenvolvidos. Com isso foi possível perceber um pouco a pegada do grupo, o que foi bom de ver! Também conversamos muito sobre as possibilidades da alegoria do Orwell e aí sugeri já como tarefa para o dia seguinte que eles apresentassem cenicamente uma versão da história a partir do ponto de vista de uma personagem da narrativa do Orwell com a qual se identificassem de algum modo - por concordarem 100% com essa personagem ou por discordarem redondamente delas, mas teriam que escolher uma perspectiva de uma personagem e contar a história a partir desse olhar, como uma testemunha ocular dos acontecimentos da revolução ao invés do olhar onisciente do narrador Orwell. Cada um apresentou sua cena. Em todas as cenas foi possível perceber o potencial de cada ator enquanto fabulador, enquanto narrador, até mesmo como recurso técnico de atuação. Também foi interessante perceber esses olhares complementares, ver como cada um estava lendo o material e qual era a sua perspectiva em relação ao que o Orwell disse. Tudo isso rendeu uma boa conversa depois das apresentações e constatarmos o quanto o material é muito mais complexo do que aquilo que apreendemos em uma primeira leitura. Na sequência, esbocei uma longa cena dividida em três fragmentos para eles experimentarem esse diálogo direto com a dramaturgia, estudamos esse material em uma leitura rápida de mesa e estabelecemos a tarefa para os atores montarem essas pequenas cenas para o dia seguinte. A partir dessas apresentações, o Fernando já começou a interferir na cena de modo a aproveitar o que ele considerava potente e a sugerir outras soluções ao incorporar detalhes ao que estava sendo visto ou mostrado. Isso foi foi feito em parceria: ele propondo e eu eventualmente sugerindo um ou outro detalhe de dramaturgia. Foi um processo onde fizermos a verificação da dramaturgia e correções de falas de personagens: à medida que a cena se desenvolvia, eu já modificava o texto para caber melhor na boca do ator. Foi um trabalho intenso, porque conseguimos levantar essa longa cena apesar de termos acabado de nos conhecer, e conseguimos estabelecer objetivamente um diálogo produtivo entre o material que vem da dramaturgia e o modo como os atores processam e devolvem isso na cena. As intervenções do Fernando, sua ação enquanto encenador organizando e realocando esse material, criaram uma dinâmica muito fluida e produtiva. Tivemos um corpo a corpo com o material do Orwell de uma forma bastante potente e saímos bem felizes com esse primeiro encontro.

E como será a continuidade da construção da dramaturgia para o projeto Orwell?
Ao chegar aqui em João Pessoa, já propus outros exercícios e enviei mais cenas para alimentar a sala de ensaio. Dessa forma, eles irão desenvolver essas cenas da dramaturgia, assim como as propostas de exercícios enviadas pelo Fernando. Ficaremos nessa conversa à distância, eles irão preparar esses materiais e registrarão em vídeo para que possamos observar e pontuar. Assim vamos construindo esse grande roteiro copião do que vai ser o espetáculo. Vou continuar escrevendo à distância e alimentando a sala de ensaio. Em julho, estarei com eles novamente. Até lá, já teremos um bom caminho andado com dramaturgia e iremos estabelecer últimas diretivas para finalizar o texto. Nesse próximo encontro, além do Fernando Yamamoto, a Babaya Morais, que está fazendo a preparação vocal do elenco, também estará presente e ela poderá trabalhar diretamente as técnicas vocais no texto que irá para a cena. Dessa forma, iremos “trocar figurinhas” dentro e fora da sala de ensaio e fazer a orientação em trio: o Fernando irá fazer essa ponte com a Babaya e comigo e, enquanto os dois estiverem na sala, provavelmente estarei escrevendo as cenas que ainda faltarem.

Quais as aproximações entre essa proposta cênica e a sua trajetória artística?
Durante os meus dez anos na Companhia do Latão atuei desenvolvendo essa dramaturgia em sala de ensaio, a chamada dramaturgia em processo. Desde a fundação do grupo, junto com o Sérgio Carvalho, trabalhávamos nessa parceria fazendo a direção e a concepção dramatúrgica sempre por meio desse processo colaborativo de verificação do que era escrito na sala de ensaio, nesse trânsito entre a cena e o trabalho de mesa. Dessa forma, não é uma novidade construir a dramaturgia assim nesse corpo a corpo com o material, com os atores e com os demais colaboradores da cena. O que modifica são as circunstâncias de reunião das pessoas envolvidas, mas o procedimento é bastante semelhante. Também tangencia minha experiência o fato de ser um material com um recorte político mais acentuado, isso é uma temática recorrente na minha dramaturgia. Trabalhar com o Orwell está dentro de meu escopo de interesse, eu poderia fazer isso no Alfenim ou poderia ter feito na Companhia do Latão. Seria um material muito plausível de utilizarmos pela potência e pelo discurso político muito contundente. Isso sempre me atraiu e acho que foi um pouco pensando nisso que o Fernando fez essa ponte entre mim e o Projeto Orwell, pois ele já conhecia meu trabalho e sabia que essa proposta está bem dentro do universo da dramaturgia que venho desenvolvendo tanto em São Paulo quanto aqui em João Pessoa.



O que considera ser mais desafiador nessa residência artística para seu trabalho de dramaturgo?
Por ser algo pouco recorrente em minha trajetória, o desafio que se põe agora para mim é o fato de se tratar de um espetáculo de rua. Tanto na minha vivência com a Latão quanto com o Alfenim, tive apenas uma experiência de dramaturgia pensada para a rua e, mesmo assim, era uma proposta de intervenção que é bem diferente do Projeto Orwell. Isso é um desafio, porque uma coisa é escrever pensando em uma sala com todos os equipamentos de amplificação do discurso ao seu dispor, outra coisa é fazer isso na rua com o grau infinito e interferências que esse espaço oferece seja para o bem, seja para o mal. A dramaturgia precisa incorporar esse dado, contemplar essa particularidade e especificidade comparativamente à dramaturgia de salão, de porta fechada, sem perder a complexidade, a qualidade literária e a poética do texto. É fazer com que esse texto chegue em uma relação direta e em um campo repleto de interferências que é a rua. A dosagem desse discurso é algo que está para ser verificado, tanto que o Fernando deve programar para que o elenco comece a se exercitar e ensaiar na rua a fim de saber o alcance desse discurso. Tenho essa preocupação de fazer essa escrita já mais dilatada, que precisa ter uma forma mais potente para ser lida sem muitas sutilezas, digamos, psicológicas, pois na rua não há espaço para isso, mas sem perder a complexidade e o lirismo. O desafio é fazer esse texto chegar com força na rua, independentemente do ônibus que passa, do cão que late, do bêbado que interfere. Esse dado é uma novidade para mim nessa experiência.

E que potencialidades enxerga no Projeto Orwell?
Pelo pouco que vi no trabalho dos dois grupos e pela qualidade do material do Orwell, não tenho dúvidas de que essa proposta de montagem é muito potente. É o tipo de material que permite leituras muito atuais e possibilita fazer infinitos links com o que está acontecendo no Brasil, é um texto atualíssimo. Em um mundo de relações totalmente tomadas pelo totalitarismo e por atitudes fascistas, é muito necessário falar sobre o que está acontecendo a partir dessa perspectiva do Orwell, nosso atual contexto dialoga diretamente com a fábula do Orwell. Por isso, de cara, a montagem já tem essa urgência de falar sobre o que estamos vivendo hoje no Brasil. Com a perspectiva de o espetáculo estrear em setembro, ou seja, às vésperas das eleições, mais do que nunca, essa potencialidade se multiplica, sobretudo porque o acirramento político vai estar exacerbado e será muito bacana ver isso reverberar nas ruas através dessa proposta cênica.

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