O que vem por aí - O QUE RESTOU DOS NOSSOS AMORES
A ditadura, o HIV, o amor entre Caio e Isabel, os escritores Caio Fernando Abreu e Cacaso. Como vários fios de uma trama, esses elementos se intercruzam e dão forma ao novo espetáculo do Grupo Beta de Teatro, O QUE RESTOU DOS NOSSOS AMORES. Brincando com o gênero do melodrama e estruturada em dois atos - Lado A e Lado B, como os dois lados do vinil -, a montagem recorre, ainda, a um compilado de referências musicais que estão presentes nos contos de Caio Fernando Abreu, cuja trajetória artística e pessoal se mescla com a obra “Beijo na Boca”, de Cacaso, e inspira livremente a dramaturgia, a primeira escrita por Thiago Mozer, que também estreia na direção ao lado do diretor carioca convidado Rodrigo Portella (Cia. Cortejo).
Com estreia prevista para outubro, “O que restou dos nossos amores” fala da relação entre as personagens Caio e Isabel, do seu início e quinze anos depois, trazendo os contextos da ditadura militar pós-AI-5 e da ditadura afetiva durante o boom do HIV no Brasil, quando ainda não havia o medicamento AZT e a doença era conhecida como “câncer gay”.
Confira a entrevista com o dramaturgo e diretor Thiago Mozer. Esta é a quinta e última da série “O que vem por aí”, sobre as estreias de 2017, promovida pelo Blog Cena Capixaba em parceria com a atriz e jornalista Patricia Galleto com o objetivo de informar, com um pouco mais de profundidade, sobre o que tem sido produzido no Espírito Santo, além de ampliar o espaço de divulgação sobre o fazer teatral local.
Como surgiu “O que restou dos nossos amores”?
A sinopse desse espetáculo surgiu em 2014, em uma oficina com o Vinícius Souza, do Galpão Cine Horto. À época, se chamava “Temporada de Solidão”. Logo em seguida, em 2015, o Fernando Marques (Grupo Z de Teatro) coordenou um núcleo de estudos em dramaturgia contemporânea, do qual participei, mas eu sofri um acidente de trânsito nesse período e fiquei em casa parado. Enquanto o Dinho desenvolvia o conteúdo teórico, que é muito bacana, mas que eu já tinha visto boa parte no curso de Letras, eu fui escrevendo em casa. Nasceram daí dois espetáculos: a versão narrativa e a versão só de diálogos, cuja totalidade era de 180 páginas. Para esta encenação, preferi concatenar em 30 páginas.
Eu e Dinho tínhamos uma discussão sobre as pessoas usarem um termo que me incomoda muito: “textão”. A gente falava que textão era um “Grande Sertão Veredas”, um Dostoiévski. Essa urgência da internet e esse pouco tempo que as pessoas têm para ler as coisas. E outra coisa que me incomodava muito era o andamento político do Brasil, que a coisa toda degringolou. E foi nesse momento em que surgiram esses dois textos com o mesmo tema. Como não tivemos tempo de corrigir os dois, preferimos nos debruçar sobre a versão de 180 páginas e, não à toa, eu e Dinho nos encontrávamos fora do núcleo. Foi aí que eu senti uma enorme necessidade de jogar luz aos que vieram antes de nós, até para procurar entender aquilo tudo que se passava.
Do que trata o texto?
Quando estava em casa escrevendo, eu queria exagerar mesmo, algo meio Felipe Hirsch, Sutil Companhia. Seis horas de espetáculo, sentem aí, fiquem com isso, muito silêncio, e às vezes muita verborragia. Eu estava em casa escrevendo o texto e minha mãe chegou meio aturdida e falou “seu tio Paulo voltou para o hospital” - meu tio Paulo é soropositivo desde a década de 80. O medicamento AZT não tinha chegado ainda ao Brasil à época de sua infecção. Isso me fez lembrar de um episódio na infância, de quando eu estava em um churrasco em família e tio Paulo chegou, fez-se um silêncio quase vertiginoso - e criança não entende muito o porquê do silêncio -, mas logo depois as vozes voltaram à tona. As pessoas que estavam à mesa saíram, só ficamos eu, meu pai e minha mãe. Depois, meu tio Paulo ficou como uma figura não quista, ovelha negra da família.
Eu já estava querendo falar sobre ditadura militar, porque eu acho que é um dos episódios mais horrendos da nossa história, junto com os portugueses violando os nossos índios, e sempre gostei de estudar esse tema. Daí surgiu a ideia do arco dramático, a curva de onde a coisa começa e onde ela para, junto com o Dinho. A gente começa o espetáculo numa ditadura política e termina numa ditadura afetiva, ou seja, o arco do espetáculo é da ditadura militar pós-AI-5 até o boom do HIV no Brasil - não tinham dado o nome ainda de HIV, dizia-se que era “peste gay”, “câncer gay” e por aí vai.
Você lança mão de algumas referências literárias, como Caio Fernando Abreu. Como se deu essa costura textual?
Caio Fernando Abreu é um escritor que eu nunca ignorei. Em meados de 2015, eu acho que ele vinha, junto com Clarice Lispector, em um excesso de citação na internet e a gente não sabia de onde a coisa vinha, de que obra. Ele começou a cair num terreno maldito: “O Caio é melodramático”, “O Caio é internetês”. Depois, uma editora publicou um livro “Caio de A a Z”, com as mais recorrentes citações em Facebook do Caio, e com aquilo meu cérebro virou um mingau! Falei: “Meu deus, tadinho do Caio!
Dito isso, me caiu nas mãos, nessa mesma época do acidente e do texto acontecendo, a antologia poética do Cacaso, que eu só tinha estudado em Letras. Eu amei Cacaso, os poetas malditos, aí entraram todos aqueles marginais que hoje não são mais marginais, que foram para o mainstream - Paulo Leminsk, Cacaso, Ana Cristina César, e o Caio Fernando, ficcionista contemporâneo destes. E tem um livro do Cacaso que eu não tinha lido ainda chamado “Beijo na Boca”, são pequenos poemas em que ele fala da saga do eu lírico por um beijo na boca de uma musa que sumiu, foi pra Europa, deixou-o aos prantos, e tem aquela pegada da ditadura também, de um amor que você não sabe pra onde foi. Eu achei lindo aquele livro. Aquilo me deu um gás para escrever o texto, já afinando uma amizade com a Paula Dip, que é a biógrafa do Caio Fernando.
Com essa coisa do meu tio, da ditadura, do Caio Fernando participando ativamente da minha literatura - sobretudo porque, quando se é adolescente e se lê um autor falando dos pelos que vazam a camisa de um homem, o quanto aquilo o excita dentro de um café e como eles vão parar num apartamento, transam e nunca mais vão se ver, isso diz muito sobre a condição de ser gay -, decidi falar do Caio, mas sem pagar pela biografia da Paula Dip, que acho que foi uma das primeiras biografias a se esgotar velozmente no circuito editorial brasileiro - o “Para sempre teu Caio F”. Não tínhamos dinheiro para isso. Decidi colocar um personagem que tem a mesma batalha do Cacaso, que é essa busca de um beijo - não à toa, o primeiro ato é todo atrás de um beijo -, mas com a possibilidade de brincar com biografia do Caio Fernando Abreu, as canções de seus contos e romances, investigando os lugares do melodrama. O personagem se chama Caio, é virginiano, se torna jornalista musical. Não à toa, o programa do espetáculo vem com “à memória de Caio Fernando Abreu e Cacaso”, que são os dois pontapés literários para a estrutura dramatúrgica. O personagem segue o rumo que o Caio Fernando Abreu fez dentro do jornalismo, começa a entender de astrologia, como Caio F. Enfim, é um panorama sobre a vida do Caio, dentro daquilo que se pode fazer, buscando esse intercruzamento entre Cacaso e Caio Fernando Abreu, e, claro, juntei o episódio familiar com a estrutura política que vivíamos à época - e que ainda vivemos, cada vez pior.
E sobre ela, a Isabel, qual é a condução da personagem?
Ela entra no espetáculo trazendo esse movimento que o Cacaso propôs no seu texto, a menina que vai ser o ímã do beijo na boca. Ela é mais velha do que ele, o primeiro amor do Caio. Ela está de passagem naquele bairro, os seus pais são comunistas, ligados a um movimento revolucionário... O Lado A é a saga do Caio por ela, o Lado B é a saga dela pelo Caio. E o espetáculo se chama “O que restou dos nossos amores” por causa da canção do Trenet - “Que Reste-t-il de Nos Amours”, uma canção francesa. A Isabel traz esse mote do livro do Cacaso, será ela quem vai servir de ímã para disparar a sexualidade do personagem, mas também é ela que busca a reparação diante de suas escolhas. São personagens supercontraditórios. Tal como os do Caio, cheio de nuances.
Há um jogo com as canções e os lados do vinil que traz ainda mais referências. Como elas ajudam a estruturar a montagem do espetáculo?
A Paula e o Vinicius, à época que éramos só nós três e não estávamos integrados ao Beta, já diziam que adoravam dois gêneros que eu consumo muito pouco, que são melodrama e musical. Eu não gosto muito do gênero musical, do desgaste que houve - na verdade, acho que há outras formas de encenação de um musical que não caiam em uma repetição de padrões presentes no musical do eixo Rio-São Paulo. Como o Vini e a Paula gostam muito desse gênero, eu resolvi começar por um texto que fosse melodramático no tom - e não à toa, o Eldon, que assina a preparação corporal e a direção de movimento, trabalha com os meninos com o Rasaboxes, que é pra jogar a atuação lá em cima. E o melodrama, por sua vez, também consumo pouco. Quis, sobretudo, em cumprir e descumprir com os acordos estéticos deste gênero, brincar por meio do texto e da encenação.
O melodrama tem ingredientes que, depois, a televisão suga para estruturas do folhetim da novela, que é a evocação da piedade, o temor, o suspense, a autocomplacência, a autocompaixão. Eu decidi, então, escrever um espetáculo que tivesse a estrutura do melodrama, que fosse lá no musical, mas não tivesse nenhuma canção cantada, como o que Felipe Hirsch fez com “Trilhas Sonoras de Amor Perdidas”, ou então “Não sobre o amor”, ou até mesmo “A vida é cheia de som e fúria”. As canções entram nesse nível textual da narrativa ou no Lado B, que é o segundo ato, quando ele se torna jornalista musical e aí existe uma cadeia de contrapontos. Ela nunca mais escuta canções brasileiras e ele nunca mais escuta canções internacionais.
Além disso, a gente não tem verba para fazer um musical e pagar o Ecad, e nem é minha pretensão estética de que isso vire um musical. O espetáculo já tem o nome de uma canção muito melancólica, e ele tem um formato de arena por remeter a um disco, um vinil, porque esse é o ponto central deles - ela vai buscar algo na casa dele, fica devendo um vinil e daí a relação amical é disparada. De outra forma, em quase todas as aberturas dos contos do Caio, aparece: “para se ler ao som de Nara Leão”, “para se ler ao som de Angela Ro Ro”, “para se progredir ao som de Ella Fitzgerald” e por aí vai. Ele é um autor muito musical nesse sentido, as canções dizem muito sobre os personagens. O espetáculo, então, é todo cosido nas falas por causa dessa influência do Caio Fernando Abreu com as canções, os personagens se respondem ou fazem perguntas a partir de versos de canções. Eu fiz um mapeamento das canções que são citadas nos contos do Caio. O Lado A inclina-se para as canções de rock e o Lado B se inclina para o cancioneiro musical brasileiro.
Então, existem perguntas, respostas, que às vezes vai causar um estranhamento no espectador, ou pelo reconhecimento imediato daqueles versos, ou pelo entendimento de que, dentro da estrutura do melodrama, aquilo foi demais, e eu adoro isso, essa brincadeira, porque é a possibilidade de colocar numa mesma encenação Alcione com New Order, porque pra mim música é música. Mas há três discos que são estruturantes para o processo cênico, de preparação dos atores e para o processo de escrita, que é o álbum Angela Ro Ro, da Angela Ro Ro, o Fullgás, da Marina Lima, e o disco The Queen is Dead, do The Smiths.
Sendo sua primeira experiência como dramaturgo e diretor, como o Grupo Beta abraçou esse projeto?
O Beta tem uma dinâmica que é muito interessante, isso é irresponsavelmente brilhante. Pessoas que não estiveram em determinados lugares estarão em algum momento, e isso é uma roda gigante. No espetáculo anterior, “A Menina Cão”, a Lorena se lança na dramaturgia e na direção, eu, que estava na cena de “A Menina Cão”, agora vou para direção e dramaturgia, o próximo texto talvez seja do Vinicius, então, a gente tem essa rotatividade que eu chamo de irresponsabilidade brilhante porque permite a gente experimentar lugares por quais não passamos, mas é sobretudo com a ideia de oxigenar o grupo, oxigenar espaços não ocupados. É um desafio.
E como surgiu o convite ao Rodrigo Portella para dividir a direção do espetáculo com você?
Quando o texto já estava corrigido e fechadinho com o Dinho, em cerca de três meses depois, fui ver “Antes da Chuva”, do Rodrigo Portella. Assistindo ao espetáculo, eu, Paula e Vinicius começamos a escorrer pela cadeira pelo choque, porque ele fez o que a gente queria fazer. Assim como eu misturo Cacaso com Caio Fernando Abreu, ele fez um cruzamento de “Amor nos Tempos do Cólera” com “O Leitor”, e com um vazio cênico, assim como nossa proposta. Eu olhei para aquele espetáculo, a saga de um menino pelo amor de uma menina... E a gente foi ficando tão chocado pela identificação. E a dinâmica de encenação muito rápida, ágil, aproveitando os vazios e potencializando coisas do melodrama sem cair na bestialidade da televisão (não que a televisão não produza coisas boas, mas o repetível do novelesco). Aí falei “gente, temos que trabalhar com esse homem, já que ele entendeu a nossa cabeça”.
Conversamos com o Rodrigo, houve uma identificação imediata, porque a minha escritora predileta hoje viva é a escritora do segundo espetáculo deles, “Alice mandou um beijo”, que é Alice Munro, que ganhou o nobel em 2013. E o Rodrigo foi muito acessível. A gente chegou a um ponto de amizade, e isso é legal, de uma sinceridade muito próxima da que tenho com o Dinho. Eu apresentei o texto ao Rodrigo e ele topou de súbito.
No fim das contas, você acabou juntando as duas versões do espetáculo...
Eu juntei porque o Rodrigo falou “Thiago, não perde isso”. O Dinho tinha uma grande vontade de pegar esse meu texto, colocar dois diretores dirigindo cada ato, sem se conhecer, com atores diferentes, e depois juntar no dia da estreia e ficar um espetáculo nessa condição. Isso ficou muito forte na minha cabeça, mas eu abandonei porque era muito caro, era inviável fazer dentro de um projeto. Aí vem o Rodrigo do Rio de Janeiro e recupera essa ideia, e fala “faz um segundo ato silencioso e bomba de melodrama no primeiro”. Isso provoca no espectador um lugar de empatia imediato, ou ele compra ou ele não compra. Aí recuperamos isso no processo e agora é como está.
O Lado A é a saga pelo beijo, o intervalo é o tempo do exílio e o Lado B é ela voltando para esse bairro de que eles falam na peça. Dá um salto no tempo. Começa com o Caio com 18 e termina com o Caio com 34 anos.
E como tem sido o seu trabalho com o Rodrigo Portella?
Ele é muito rápido. O Rodrigo tem um dinamismo que eu nunca pensei em experimentar em um processo. Isso foi muito surpreendente. Até porque ele está vindo de um sucesso enorme lá no Rio, que é o “Tom na Fazenda”, então, ele está num momento bom da vida dele, ele emplacou o “Antes da Chuva”, que foi o espetáculo mais apresentado em toda a história do Sesc, do Palco Giratório, ele passou por todas as cidades. Logo depois, emplaca algumas indicações ao Prêmio Shell. Ele está num momento bom da carreira dele, mas num momento de encenação em que a gente tem que fazer acordos porque eu nunca dirigi, nunca estive nesse lugar, assim como no da dramaturgia. Então, lidar com um encenador muito dinâmico ensina. Havia horas em que ele falava assim: “Thiago, põe só uma mão no ombro, deixa o espectador pensar o resto”, e aquilo me chapava. Mas o Rodrigo é um encenador que deixa muito exercício, é muito generoso nesse aspecto, e a preocupação dele hoje na encenação é o jogo. Para ele, se não houver jogo, se não houver essa cumplicidade, aquela história poderia ser lida, não encenada, dá um livro sendo dito.
A encenação com o Rodrigo, então, me ensinou esse lugar e ele deixou um exercício muito bacana: três S’s (ésses) para a minha encenação. Falou “para a estrutura do seu texto, que é muito dinâmica, trabalha os três ésses - cria Síntese, Surpresa e Suspensão. Quando o espectador achar que você vai pra lá, você vem pra cá, e quando o espectador achar que você vai pra lá, você vai pra lá mesmo e banca o ordinário, o banal, o piegas, não some, não, porque a pior coisa é falar de uma história de amor disfarçando. Não tem coisa pior do que o espectador, o encenador e os atores que estão em cena, sobretudo na arena, que é o sistema que mais expõe o ator, disfarçar as histórias de amor”. E é isso o que eu venho falando para os meninos. Existe esse lugar de assumir todas as estruturas do melodrama que a gente concatenou dentro desses três ésses.
E quanto à luz, ao figurino e à trilha, se é que haverá?
Tem trilha, a gente está começando a investigar, a priori, tem uma ideia de que o Rodrigo gosta muito, e a gente vai ver como funciona na encenação, que é usar um único instrumento citado no texto ao longo dos dois atos, que é a guitarra.
E, sobre a luz, o Daniel Boone quer trabalhar o Lado A enquanto lembrança e o Lado B enquanto confinamento, porque eles só estão nos apartamentos no Lado B. No Lado A, há um dinamismo textual porque eles passam pelo cinema, pelo baile, pela garagem, pela praça, pela escola, pela biblioteca. Há uma diversidade de espaços e o disco vai girando. A encenação é sempre assim, como se fosse um disco rodando mesmo. E o Lado B é frio, é trabalhado na preparação corporal com Viewpoints. Isso tudo vai afetar na luz. O Boone quer usar uma luz cinza no Lado B, por exemplo.
Quanto ao figurino, o Rodrigo trouxe um lugar muito potente para o texto, que é o de colocar os meninos como atores jogadores, não como velhinhos lembrando de uma história, sobretudo porque o título permite ir para esse lugar. Então, a gente está pensando nos meninos de jeans, ou uma sarja com elastano meio jeans, eles deverão estar em um macacão. O jeans é atemporal, mas também marca uma época, sobretudo com o boom das calças Zoomp e Lee na década de 60, quando elas chegam aqui no Brasil. Ao mesmo tempo, a gente não queria ir para esse lugar do óbvio, da calça jeans e blusa de rock. Ainda estamos construindo.
Qual é sua visão, em síntese, sobre montar um espetáculo um pouco mais longo do que aquilo que mais se vê em Vitória e falando de ditadura e de amor nos tempos de hoje?
As pessoas estão muito apressadas, parece que a gente tem vivido o fim do sono. Tenho a impressão de que a gente viveu uma safra de espetáculos de 45 minutos num passado não muito distante - talvez seja só impressão. E parece que as tecnologias foram imprimindo na gente uma velocidade no processo de percepção e assimilação das coisas muito rápida. O Caio foi sendo deflagrado em epílogos, quase como aquelas coisas que a gente põe em túmulo: “que seja doce”. Então, eu tinha vontade de escrever um texto que desgastasse o espectador no sentido de fruição, que falasse da política, dos generais, das formas de tortura, da constituição sendo rasgada (é claro que isso ficou de um modo condensado). Aí trabalhei isso com o Dinho, um espetáculo longo, dividido em dois atos, porque o ato também está num passado distante, parece que não se divide mais assim ou não se assume isso, mas estamos levando para cena apenas 30 páginas.
Mas é um texto, sobretudo, porque eu precisava investigar e entender esse lugar de hoje, como os golpes se repetem, olhando para o que a gente escondeu, que foi a ditadura. Se a gente não joga luz sobre o passado, acontece o que acontece: a gente tem a capacidade de caçoar de uma mulher que tem uma mandíbula toda reconstituída, tem problemas fonéticos em função da tortura sofrida na ditadura, mas que ainda assim é perseguida em grupos de WhatsApp, nos meios de comunicação, e, na Olimpíada, é mandada tomar no cu, caçoada insistentemente pelo seu ritmo de fala. E a capacidade que a gente teve de destituí-la friamente, uma mulher que passou por inúmeros métodos de tortura, e de fazê-la responder, por mais de 13 horas, a homens brancos de terno. Eu não vivi um tempo da ditadura, mas eu gosto de entendê-lo para saber onde estamos. Por outro lado, eu vivi um tempo em que se aplicou um golpe por misoginia, interesses, e eu nunca achava que isso poderia se repetir dentro da história de uma democracia. Parece que o lugar da mulher hoje é muito ruim, eles ainda não aceitam a mulher no poder.
Estar num grupo como o Beta, que sempre vai falar do feminino, não importa como, me dá um entendimento que ajuda pra caramba a prosseguir. Não acredito que a arte salva, nada salva (esse meu coração ateu…), mas acho que ajuda pra caramba. Se você me perguntar por que desse texto hoje e por que de fazer teatro, vou dar duas respostas: para ressignificar os sentidos estancados pelo cotidiano e para exercitar minha imaginação e a sua, acho que é sobretudo isso.
Acho que esse espetáculo, em algum momento, com essa dilatação, com esses dois atos e revisitando aqueles que vieram antes de nós, pode nos permitir ir pra frente, evitar erros burros. Esse texto revisita lugares que a gente fez questão de esquecer. É claro que, pela estrutura de poder, como as coisas estão, a gente esquece. Então, poder encenar “O que restou dos nossos amores”, sobretudo com esse título melancólico - e no plural -, nos permite revisitar lugares silenciados. Eu queria recuperar essas duas ditaduras, uma enquanto sujeito (me incomoda muito a ditadura) e a outra enquanto gay. Essa taxação do jornalismo e da publicidade de “câncer gay” parece que instaurou um pânico generalizado sobre a gente, sobretudo naquela década de 80. O Caio ia falando nas entrevistas que dava para as rádios: “gente, eu só quis amar”. É uma frase tão pequena e tão potente, acho que as pessoas só precisam escutar isso.
Com estreia prevista para outubro, “O que restou dos nossos amores” fala da relação entre as personagens Caio e Isabel, do seu início e quinze anos depois, trazendo os contextos da ditadura militar pós-AI-5 e da ditadura afetiva durante o boom do HIV no Brasil, quando ainda não havia o medicamento AZT e a doença era conhecida como “câncer gay”.
Confira a entrevista com o dramaturgo e diretor Thiago Mozer. Esta é a quinta e última da série “O que vem por aí”, sobre as estreias de 2017, promovida pelo Blog Cena Capixaba em parceria com a atriz e jornalista Patricia Galleto com o objetivo de informar, com um pouco mais de profundidade, sobre o que tem sido produzido no Espírito Santo, além de ampliar o espaço de divulgação sobre o fazer teatral local.
Paula Molina e Vinicius Duarte.
Como surgiu “O que restou dos nossos amores”?
A sinopse desse espetáculo surgiu em 2014, em uma oficina com o Vinícius Souza, do Galpão Cine Horto. À época, se chamava “Temporada de Solidão”. Logo em seguida, em 2015, o Fernando Marques (Grupo Z de Teatro) coordenou um núcleo de estudos em dramaturgia contemporânea, do qual participei, mas eu sofri um acidente de trânsito nesse período e fiquei em casa parado. Enquanto o Dinho desenvolvia o conteúdo teórico, que é muito bacana, mas que eu já tinha visto boa parte no curso de Letras, eu fui escrevendo em casa. Nasceram daí dois espetáculos: a versão narrativa e a versão só de diálogos, cuja totalidade era de 180 páginas. Para esta encenação, preferi concatenar em 30 páginas.
Eu e Dinho tínhamos uma discussão sobre as pessoas usarem um termo que me incomoda muito: “textão”. A gente falava que textão era um “Grande Sertão Veredas”, um Dostoiévski. Essa urgência da internet e esse pouco tempo que as pessoas têm para ler as coisas. E outra coisa que me incomodava muito era o andamento político do Brasil, que a coisa toda degringolou. E foi nesse momento em que surgiram esses dois textos com o mesmo tema. Como não tivemos tempo de corrigir os dois, preferimos nos debruçar sobre a versão de 180 páginas e, não à toa, eu e Dinho nos encontrávamos fora do núcleo. Foi aí que eu senti uma enorme necessidade de jogar luz aos que vieram antes de nós, até para procurar entender aquilo tudo que se passava.
Do que trata o texto?
Quando estava em casa escrevendo, eu queria exagerar mesmo, algo meio Felipe Hirsch, Sutil Companhia. Seis horas de espetáculo, sentem aí, fiquem com isso, muito silêncio, e às vezes muita verborragia. Eu estava em casa escrevendo o texto e minha mãe chegou meio aturdida e falou “seu tio Paulo voltou para o hospital” - meu tio Paulo é soropositivo desde a década de 80. O medicamento AZT não tinha chegado ainda ao Brasil à época de sua infecção. Isso me fez lembrar de um episódio na infância, de quando eu estava em um churrasco em família e tio Paulo chegou, fez-se um silêncio quase vertiginoso - e criança não entende muito o porquê do silêncio -, mas logo depois as vozes voltaram à tona. As pessoas que estavam à mesa saíram, só ficamos eu, meu pai e minha mãe. Depois, meu tio Paulo ficou como uma figura não quista, ovelha negra da família.
Eu já estava querendo falar sobre ditadura militar, porque eu acho que é um dos episódios mais horrendos da nossa história, junto com os portugueses violando os nossos índios, e sempre gostei de estudar esse tema. Daí surgiu a ideia do arco dramático, a curva de onde a coisa começa e onde ela para, junto com o Dinho. A gente começa o espetáculo numa ditadura política e termina numa ditadura afetiva, ou seja, o arco do espetáculo é da ditadura militar pós-AI-5 até o boom do HIV no Brasil - não tinham dado o nome ainda de HIV, dizia-se que era “peste gay”, “câncer gay” e por aí vai.
Você lança mão de algumas referências literárias, como Caio Fernando Abreu. Como se deu essa costura textual?
Caio Fernando Abreu é um escritor que eu nunca ignorei. Em meados de 2015, eu acho que ele vinha, junto com Clarice Lispector, em um excesso de citação na internet e a gente não sabia de onde a coisa vinha, de que obra. Ele começou a cair num terreno maldito: “O Caio é melodramático”, “O Caio é internetês”. Depois, uma editora publicou um livro “Caio de A a Z”, com as mais recorrentes citações em Facebook do Caio, e com aquilo meu cérebro virou um mingau! Falei: “Meu deus, tadinho do Caio!
Dito isso, me caiu nas mãos, nessa mesma época do acidente e do texto acontecendo, a antologia poética do Cacaso, que eu só tinha estudado em Letras. Eu amei Cacaso, os poetas malditos, aí entraram todos aqueles marginais que hoje não são mais marginais, que foram para o mainstream - Paulo Leminsk, Cacaso, Ana Cristina César, e o Caio Fernando, ficcionista contemporâneo destes. E tem um livro do Cacaso que eu não tinha lido ainda chamado “Beijo na Boca”, são pequenos poemas em que ele fala da saga do eu lírico por um beijo na boca de uma musa que sumiu, foi pra Europa, deixou-o aos prantos, e tem aquela pegada da ditadura também, de um amor que você não sabe pra onde foi. Eu achei lindo aquele livro. Aquilo me deu um gás para escrever o texto, já afinando uma amizade com a Paula Dip, que é a biógrafa do Caio Fernando.
Com essa coisa do meu tio, da ditadura, do Caio Fernando participando ativamente da minha literatura - sobretudo porque, quando se é adolescente e se lê um autor falando dos pelos que vazam a camisa de um homem, o quanto aquilo o excita dentro de um café e como eles vão parar num apartamento, transam e nunca mais vão se ver, isso diz muito sobre a condição de ser gay -, decidi falar do Caio, mas sem pagar pela biografia da Paula Dip, que acho que foi uma das primeiras biografias a se esgotar velozmente no circuito editorial brasileiro - o “Para sempre teu Caio F”. Não tínhamos dinheiro para isso. Decidi colocar um personagem que tem a mesma batalha do Cacaso, que é essa busca de um beijo - não à toa, o primeiro ato é todo atrás de um beijo -, mas com a possibilidade de brincar com biografia do Caio Fernando Abreu, as canções de seus contos e romances, investigando os lugares do melodrama. O personagem se chama Caio, é virginiano, se torna jornalista musical. Não à toa, o programa do espetáculo vem com “à memória de Caio Fernando Abreu e Cacaso”, que são os dois pontapés literários para a estrutura dramatúrgica. O personagem segue o rumo que o Caio Fernando Abreu fez dentro do jornalismo, começa a entender de astrologia, como Caio F. Enfim, é um panorama sobre a vida do Caio, dentro daquilo que se pode fazer, buscando esse intercruzamento entre Cacaso e Caio Fernando Abreu, e, claro, juntei o episódio familiar com a estrutura política que vivíamos à época - e que ainda vivemos, cada vez pior.
E sobre ela, a Isabel, qual é a condução da personagem?
Ela entra no espetáculo trazendo esse movimento que o Cacaso propôs no seu texto, a menina que vai ser o ímã do beijo na boca. Ela é mais velha do que ele, o primeiro amor do Caio. Ela está de passagem naquele bairro, os seus pais são comunistas, ligados a um movimento revolucionário... O Lado A é a saga do Caio por ela, o Lado B é a saga dela pelo Caio. E o espetáculo se chama “O que restou dos nossos amores” por causa da canção do Trenet - “Que Reste-t-il de Nos Amours”, uma canção francesa. A Isabel traz esse mote do livro do Cacaso, será ela quem vai servir de ímã para disparar a sexualidade do personagem, mas também é ela que busca a reparação diante de suas escolhas. São personagens supercontraditórios. Tal como os do Caio, cheio de nuances.
Thiago Mozer dirige Paula Molina e Vinicius Duarte.
Há um jogo com as canções e os lados do vinil que traz ainda mais referências. Como elas ajudam a estruturar a montagem do espetáculo?
A Paula e o Vinicius, à época que éramos só nós três e não estávamos integrados ao Beta, já diziam que adoravam dois gêneros que eu consumo muito pouco, que são melodrama e musical. Eu não gosto muito do gênero musical, do desgaste que houve - na verdade, acho que há outras formas de encenação de um musical que não caiam em uma repetição de padrões presentes no musical do eixo Rio-São Paulo. Como o Vini e a Paula gostam muito desse gênero, eu resolvi começar por um texto que fosse melodramático no tom - e não à toa, o Eldon, que assina a preparação corporal e a direção de movimento, trabalha com os meninos com o Rasaboxes, que é pra jogar a atuação lá em cima. E o melodrama, por sua vez, também consumo pouco. Quis, sobretudo, em cumprir e descumprir com os acordos estéticos deste gênero, brincar por meio do texto e da encenação.
O melodrama tem ingredientes que, depois, a televisão suga para estruturas do folhetim da novela, que é a evocação da piedade, o temor, o suspense, a autocomplacência, a autocompaixão. Eu decidi, então, escrever um espetáculo que tivesse a estrutura do melodrama, que fosse lá no musical, mas não tivesse nenhuma canção cantada, como o que Felipe Hirsch fez com “Trilhas Sonoras de Amor Perdidas”, ou então “Não sobre o amor”, ou até mesmo “A vida é cheia de som e fúria”. As canções entram nesse nível textual da narrativa ou no Lado B, que é o segundo ato, quando ele se torna jornalista musical e aí existe uma cadeia de contrapontos. Ela nunca mais escuta canções brasileiras e ele nunca mais escuta canções internacionais.
Além disso, a gente não tem verba para fazer um musical e pagar o Ecad, e nem é minha pretensão estética de que isso vire um musical. O espetáculo já tem o nome de uma canção muito melancólica, e ele tem um formato de arena por remeter a um disco, um vinil, porque esse é o ponto central deles - ela vai buscar algo na casa dele, fica devendo um vinil e daí a relação amical é disparada. De outra forma, em quase todas as aberturas dos contos do Caio, aparece: “para se ler ao som de Nara Leão”, “para se ler ao som de Angela Ro Ro”, “para se progredir ao som de Ella Fitzgerald” e por aí vai. Ele é um autor muito musical nesse sentido, as canções dizem muito sobre os personagens. O espetáculo, então, é todo cosido nas falas por causa dessa influência do Caio Fernando Abreu com as canções, os personagens se respondem ou fazem perguntas a partir de versos de canções. Eu fiz um mapeamento das canções que são citadas nos contos do Caio. O Lado A inclina-se para as canções de rock e o Lado B se inclina para o cancioneiro musical brasileiro.
Então, existem perguntas, respostas, que às vezes vai causar um estranhamento no espectador, ou pelo reconhecimento imediato daqueles versos, ou pelo entendimento de que, dentro da estrutura do melodrama, aquilo foi demais, e eu adoro isso, essa brincadeira, porque é a possibilidade de colocar numa mesma encenação Alcione com New Order, porque pra mim música é música. Mas há três discos que são estruturantes para o processo cênico, de preparação dos atores e para o processo de escrita, que é o álbum Angela Ro Ro, da Angela Ro Ro, o Fullgás, da Marina Lima, e o disco The Queen is Dead, do The Smiths.
Sendo sua primeira experiência como dramaturgo e diretor, como o Grupo Beta abraçou esse projeto?
O Beta tem uma dinâmica que é muito interessante, isso é irresponsavelmente brilhante. Pessoas que não estiveram em determinados lugares estarão em algum momento, e isso é uma roda gigante. No espetáculo anterior, “A Menina Cão”, a Lorena se lança na dramaturgia e na direção, eu, que estava na cena de “A Menina Cão”, agora vou para direção e dramaturgia, o próximo texto talvez seja do Vinicius, então, a gente tem essa rotatividade que eu chamo de irresponsabilidade brilhante porque permite a gente experimentar lugares por quais não passamos, mas é sobretudo com a ideia de oxigenar o grupo, oxigenar espaços não ocupados. É um desafio.
E como surgiu o convite ao Rodrigo Portella para dividir a direção do espetáculo com você?
Quando o texto já estava corrigido e fechadinho com o Dinho, em cerca de três meses depois, fui ver “Antes da Chuva”, do Rodrigo Portella. Assistindo ao espetáculo, eu, Paula e Vinicius começamos a escorrer pela cadeira pelo choque, porque ele fez o que a gente queria fazer. Assim como eu misturo Cacaso com Caio Fernando Abreu, ele fez um cruzamento de “Amor nos Tempos do Cólera” com “O Leitor”, e com um vazio cênico, assim como nossa proposta. Eu olhei para aquele espetáculo, a saga de um menino pelo amor de uma menina... E a gente foi ficando tão chocado pela identificação. E a dinâmica de encenação muito rápida, ágil, aproveitando os vazios e potencializando coisas do melodrama sem cair na bestialidade da televisão (não que a televisão não produza coisas boas, mas o repetível do novelesco). Aí falei “gente, temos que trabalhar com esse homem, já que ele entendeu a nossa cabeça”.
Conversamos com o Rodrigo, houve uma identificação imediata, porque a minha escritora predileta hoje viva é a escritora do segundo espetáculo deles, “Alice mandou um beijo”, que é Alice Munro, que ganhou o nobel em 2013. E o Rodrigo foi muito acessível. A gente chegou a um ponto de amizade, e isso é legal, de uma sinceridade muito próxima da que tenho com o Dinho. Eu apresentei o texto ao Rodrigo e ele topou de súbito.
No fim das contas, você acabou juntando as duas versões do espetáculo...
Eu juntei porque o Rodrigo falou “Thiago, não perde isso”. O Dinho tinha uma grande vontade de pegar esse meu texto, colocar dois diretores dirigindo cada ato, sem se conhecer, com atores diferentes, e depois juntar no dia da estreia e ficar um espetáculo nessa condição. Isso ficou muito forte na minha cabeça, mas eu abandonei porque era muito caro, era inviável fazer dentro de um projeto. Aí vem o Rodrigo do Rio de Janeiro e recupera essa ideia, e fala “faz um segundo ato silencioso e bomba de melodrama no primeiro”. Isso provoca no espectador um lugar de empatia imediato, ou ele compra ou ele não compra. Aí recuperamos isso no processo e agora é como está.
O Lado A é a saga pelo beijo, o intervalo é o tempo do exílio e o Lado B é ela voltando para esse bairro de que eles falam na peça. Dá um salto no tempo. Começa com o Caio com 18 e termina com o Caio com 34 anos.
E como tem sido o seu trabalho com o Rodrigo Portella?
Ele é muito rápido. O Rodrigo tem um dinamismo que eu nunca pensei em experimentar em um processo. Isso foi muito surpreendente. Até porque ele está vindo de um sucesso enorme lá no Rio, que é o “Tom na Fazenda”, então, ele está num momento bom da vida dele, ele emplacou o “Antes da Chuva”, que foi o espetáculo mais apresentado em toda a história do Sesc, do Palco Giratório, ele passou por todas as cidades. Logo depois, emplaca algumas indicações ao Prêmio Shell. Ele está num momento bom da carreira dele, mas num momento de encenação em que a gente tem que fazer acordos porque eu nunca dirigi, nunca estive nesse lugar, assim como no da dramaturgia. Então, lidar com um encenador muito dinâmico ensina. Havia horas em que ele falava assim: “Thiago, põe só uma mão no ombro, deixa o espectador pensar o resto”, e aquilo me chapava. Mas o Rodrigo é um encenador que deixa muito exercício, é muito generoso nesse aspecto, e a preocupação dele hoje na encenação é o jogo. Para ele, se não houver jogo, se não houver essa cumplicidade, aquela história poderia ser lida, não encenada, dá um livro sendo dito.
A encenação com o Rodrigo, então, me ensinou esse lugar e ele deixou um exercício muito bacana: três S’s (ésses) para a minha encenação. Falou “para a estrutura do seu texto, que é muito dinâmica, trabalha os três ésses - cria Síntese, Surpresa e Suspensão. Quando o espectador achar que você vai pra lá, você vem pra cá, e quando o espectador achar que você vai pra lá, você vai pra lá mesmo e banca o ordinário, o banal, o piegas, não some, não, porque a pior coisa é falar de uma história de amor disfarçando. Não tem coisa pior do que o espectador, o encenador e os atores que estão em cena, sobretudo na arena, que é o sistema que mais expõe o ator, disfarçar as histórias de amor”. E é isso o que eu venho falando para os meninos. Existe esse lugar de assumir todas as estruturas do melodrama que a gente concatenou dentro desses três ésses.
E quanto à luz, ao figurino e à trilha, se é que haverá?
Tem trilha, a gente está começando a investigar, a priori, tem uma ideia de que o Rodrigo gosta muito, e a gente vai ver como funciona na encenação, que é usar um único instrumento citado no texto ao longo dos dois atos, que é a guitarra.
E, sobre a luz, o Daniel Boone quer trabalhar o Lado A enquanto lembrança e o Lado B enquanto confinamento, porque eles só estão nos apartamentos no Lado B. No Lado A, há um dinamismo textual porque eles passam pelo cinema, pelo baile, pela garagem, pela praça, pela escola, pela biblioteca. Há uma diversidade de espaços e o disco vai girando. A encenação é sempre assim, como se fosse um disco rodando mesmo. E o Lado B é frio, é trabalhado na preparação corporal com Viewpoints. Isso tudo vai afetar na luz. O Boone quer usar uma luz cinza no Lado B, por exemplo.
Quanto ao figurino, o Rodrigo trouxe um lugar muito potente para o texto, que é o de colocar os meninos como atores jogadores, não como velhinhos lembrando de uma história, sobretudo porque o título permite ir para esse lugar. Então, a gente está pensando nos meninos de jeans, ou uma sarja com elastano meio jeans, eles deverão estar em um macacão. O jeans é atemporal, mas também marca uma época, sobretudo com o boom das calças Zoomp e Lee na década de 60, quando elas chegam aqui no Brasil. Ao mesmo tempo, a gente não queria ir para esse lugar do óbvio, da calça jeans e blusa de rock. Ainda estamos construindo.
Qual é sua visão, em síntese, sobre montar um espetáculo um pouco mais longo do que aquilo que mais se vê em Vitória e falando de ditadura e de amor nos tempos de hoje?
As pessoas estão muito apressadas, parece que a gente tem vivido o fim do sono. Tenho a impressão de que a gente viveu uma safra de espetáculos de 45 minutos num passado não muito distante - talvez seja só impressão. E parece que as tecnologias foram imprimindo na gente uma velocidade no processo de percepção e assimilação das coisas muito rápida. O Caio foi sendo deflagrado em epílogos, quase como aquelas coisas que a gente põe em túmulo: “que seja doce”. Então, eu tinha vontade de escrever um texto que desgastasse o espectador no sentido de fruição, que falasse da política, dos generais, das formas de tortura, da constituição sendo rasgada (é claro que isso ficou de um modo condensado). Aí trabalhei isso com o Dinho, um espetáculo longo, dividido em dois atos, porque o ato também está num passado distante, parece que não se divide mais assim ou não se assume isso, mas estamos levando para cena apenas 30 páginas.
Mas é um texto, sobretudo, porque eu precisava investigar e entender esse lugar de hoje, como os golpes se repetem, olhando para o que a gente escondeu, que foi a ditadura. Se a gente não joga luz sobre o passado, acontece o que acontece: a gente tem a capacidade de caçoar de uma mulher que tem uma mandíbula toda reconstituída, tem problemas fonéticos em função da tortura sofrida na ditadura, mas que ainda assim é perseguida em grupos de WhatsApp, nos meios de comunicação, e, na Olimpíada, é mandada tomar no cu, caçoada insistentemente pelo seu ritmo de fala. E a capacidade que a gente teve de destituí-la friamente, uma mulher que passou por inúmeros métodos de tortura, e de fazê-la responder, por mais de 13 horas, a homens brancos de terno. Eu não vivi um tempo da ditadura, mas eu gosto de entendê-lo para saber onde estamos. Por outro lado, eu vivi um tempo em que se aplicou um golpe por misoginia, interesses, e eu nunca achava que isso poderia se repetir dentro da história de uma democracia. Parece que o lugar da mulher hoje é muito ruim, eles ainda não aceitam a mulher no poder.
Estar num grupo como o Beta, que sempre vai falar do feminino, não importa como, me dá um entendimento que ajuda pra caramba a prosseguir. Não acredito que a arte salva, nada salva (esse meu coração ateu…), mas acho que ajuda pra caramba. Se você me perguntar por que desse texto hoje e por que de fazer teatro, vou dar duas respostas: para ressignificar os sentidos estancados pelo cotidiano e para exercitar minha imaginação e a sua, acho que é sobretudo isso.
Acho que esse espetáculo, em algum momento, com essa dilatação, com esses dois atos e revisitando aqueles que vieram antes de nós, pode nos permitir ir pra frente, evitar erros burros. Esse texto revisita lugares que a gente fez questão de esquecer. É claro que, pela estrutura de poder, como as coisas estão, a gente esquece. Então, poder encenar “O que restou dos nossos amores”, sobretudo com esse título melancólico - e no plural -, nos permite revisitar lugares silenciados. Eu queria recuperar essas duas ditaduras, uma enquanto sujeito (me incomoda muito a ditadura) e a outra enquanto gay. Essa taxação do jornalismo e da publicidade de “câncer gay” parece que instaurou um pânico generalizado sobre a gente, sobretudo naquela década de 80. O Caio ia falando nas entrevistas que dava para as rádios: “gente, eu só quis amar”. É uma frase tão pequena e tão potente, acho que as pessoas só precisam escutar isso.
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